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sábado, 5 de dezembro de 2015

Ser treinadora no feminino: factos ou preconceitos?


(crónica de Susana Estriga)

Hoje há quem se atreva a dizer, com muita propriedade, que a descriminação da mulher no mundo do desporto é coisa do passado, que as oportunidades e condições de prática são iguais e elas só não chegam mais longe porque têm menos jeito ou motivação.

Quando abordada, em concreto, a carreira de treinador na vertente feminina, os mais afoitos não hesitarão em afirmar que as mulheres não foram “talhadas” para as exigências da profissão, esgrimindo argumentos inquestionáveis, como sejam:

- Não se conhece treinadoras que tenham vencido campeonatos ou provas de elite.
- As mulheres são inseguras e menos agressivas. Não são suficientemente fortes.
- Até as mulheres preferem homens treinadores. Aceitam mais facilmente as ordens de um homem.
- As mulheres não têm a ambição, estão menos motivadas para serem treinadoras, em especial de alto nível.
- As mulheres têm outros papéis sociais, nomeadamente familiares, que são incompatíveis com as exigências da profissão de treinador.

Numa rápida análise à taxa de feminização, observamos que apenas 13% dos treinadores são mulheres e que estas estão em maior número apenas na ginástica (mais de 60%), em todas as restantes modalidades estão em minoria. No caso do futebol a taxa de feminização é de apenas 2%.


Este problema é agravado se analisarmos apenas os lugares de topo, incluindo a liderança de seleções nacionais e treinadores integrados na missão olímpica.

A propósito deste assunto vale a pena ler o relatório do projeto  – Treinadoras: dirigir outros desafios, com financiamento do Programa Operacional do Potencial Humano/QREN, disponível no site da Associação Portuguesa Mulheres e Desporto (http://www.mulheresdesporto.org.pt/web/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&id=79&Itemid=123). 

Neste estudo confirma-se o que todos já esperávamos, “a atividade de treinadora circunscreve-se aos escalões de formação, principalmente nos desportos coletivos, e aos escalões femininos, com menor visibilidade e prestígio, reconhecimento e valorização social. O acesso das mulheres ao enquadramento das equipas principais e/ou de escalões masculinos constitui um obstáculo a transpor”.

Mas centremo-nos no relato de uma treinadora jovem e ambiciosa, que fez uma incursão por um dos grandes clubes de futebol, em particular pelo sector da formação masculina, e sobre o qual vale a pena refletir.

No mundo do futebol, as oportunidades não são iguais para as mulheres e para quem está na formação. Estou desiludida. Estive na formação de um clube grande. Era treinadora principal e via os outros colegas a subir e eu não. Mas eu queria ser profissional, por isso questionei o coordenador: se é pelos resultados têm que me dar oportunidades! Foi-me dito que não, que não ia ser bem aceite ter uma mulher nos escalões de competição, mesmo que fosse apenas como adjunta. Foi então que decidi mudar para o feminino. Até porque era uma causa para mim. Estava na primeira liga feminina e coordenava toda a formação do clube. Mas os conflitos com o presidente fizeram com que abandonasse. Queria mandar na gestão da equipa e deixou de haver comunicação.” Não tenho medo! Preparei-me para ser profissional, estudei e trabalhei muito, mas estou desiludida. Estou a trabalhar noutra área e até ganho mais… e não corro o risco de ser despedida ao fim de 3/5meses… Se não encontrar um local onde seja valorizada, onde me possa realizar… onde tenha autonomia… Não voltarei a ser treinadora.
E acrescenta “Os dirigentes são mal formados… os interesses… e não estou a falar só de futebol. Eles metem-se, querem ser treinadores e coordenadores”. (Ana, nome fictício)

Este é apenas um retrato de uma realidade que apenas elas conhecem profunda e amarguradamente. Aceitamos e respeitamos as muitas mulheres desistem da carreira treinadora por razões familiares, mas é inaceitável que casos como os da Ana ainda existam na nossa sociedade. Podemos até discordar de medidas, como a descriminação positiva, que garantem o acesso das mulheres a cargos de chefia, mas a verdade é que sem medidas especiais, como as quotas, elas jamais teriam a oportunidade de ganhar experiência e competência no exercício de altos cargos de liderança e de poder.

Mas será um facto ou um mito que as mulheres preferem treinadores homens? 
Não conhecemos estudos acerca da realidade portuguesa, mas estudos realizados noutras realidades têm obtido resultados muito interessantes. Por exemplo, jogadoras de futebol de elite (da Alemanha, Noruega, Suécia e USA) atribuíram níveis elevados de competências às treinadoras com quem trabalharam e sentem-se mais satisfeitas com estilo de comunicação/relacionamento destas do que com os homens treinadores (Fasting & Pfister, 2000, estudo “Female and male coaches in the eyes of female elite soccer players”, European Physical Education Review. Volume I:91-110).

Podíamos estudar e aprofundar a veracidade de cada um dos mitos e crenças que, estou certa, afetam a maneira como a sociedade, como um todo, olha para as mulheres treinadoras, em especial em desportos com maior visibilidade e interesses económicos. Na minha prática diária, nunca me senti diminuída nas minhas competências de treinadora de atletismo decorrente da condição de ser mulher, antes pelo contrário. Estou convicta de que eu, e todas aquelas que abraçam a carreira de treinadora, têm uma responsabilidade acrescida na medida em que a sua afirmação, pela competência e dedicação, contribuem para a desmistificação de que a carreira de treinador tem género.

Por fim, penso que é preciso discutir e analisar, com coragem, esta “desvantagem do sistema” e perceber como se pode reverter esta situação, tornando o mundo do desporto mais justo e equitativo, e aproximando-o de outras realidades profissionais, apanágio das sociedades mais evoluídas. Sendo certo, que a experiência e as oportunidades de trabalho são a verdadeira Escola de Formação e de Desenvolvimento das Competências de qualquer treinador de sucesso. O ditado popular “pescadinha de rabo na boca” é uma excelente metáfora para o ciclo vicioso que aprisiona as mulheres que um dia sonharam ser treinadoras de elite.

Susana Estriga.
Licenciada em Desporto e Educação Física na Universidade do Porto.
Especialização em Desporto Rendimento - Atletismo.
Professora de Educação Física no Agrupamento de Escolas nº 2 de Abrantes.
Treinadora de Atletismo do Sporting Clube de Abrantes.

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