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domingo, 22 de maio de 2016

Uma viagem entre Bragança e Abrantes, feita de Bicicleta. Parte 3


(crónica de Carlos Bernardo)

Dia 2 - 14/10/2014  Sendim - Murça do Douro

Começo o dia com uma corrida até à janela. Não estava a chover. Corro até ao aquecedor. A roupa estava seca. O dia estava a começar bem.

Apesar de não estar a chover, estava um frio seco, daquele que atravessa a pele e entra nos ossos. Saio de Sendim, com uma dezena de bons dias dados, as pessoas por são realmente simpáticas (ou tive sorte no dia). Após os primeiros quilómetros, notei logo a mossa que o dia anterior me tinha provocado. Tinha as pernas pesadas e quando as pernas dão essa indicação à cabeça, ela rapidamente espalha a notícia pelo resto do corpo. No seguimento do dia anterior, o plano é coisa rara para estes lados ou se sobe ou se desce, foi em sofrimento que cheguei a Mogadouro. Assim que chego a Mogadouro, sou logo presenteado com um olá, era um dos rapazes que no dia anterior me deram indicações na bomba de abastecimento em Sendim. Paro um pouco num banco de jardim, vejo os locais a circularem, nas suas tarefas comuns do dia.

Sigo para Sul, em direcção a Torre de Moncorvo, mas até lá ainda tinha muito que pedalar. As paisagens por aqui são lindíssimas, ainda me encontrava no Parque Natural do Douro Internacional. Até Torre de Moncorvo, seria uma viagem bastante isolada, passava por pequenas aldeias, onde existam mais casas que gente (e existam poucas casas). Exista uma figura humana comum, a cada entrada ou saída de aldeia, o pastor. São um figura mítica desta região. Uns mais velhos outros mais novos, todos com uma expressão carregada, o tempo para esta gente demora mais a passar. Não os invejo, mas admiro-os. Todos eles têm pelo menos duas coisas em comum. A primeira, são bastante simpáticos e sempre prontos para dois dedos de conversa. A segunda, todos eles têm cães e todos os cães pensam que os gajos das bicicletas são o diabo. Ainda não refeito do encontro com o cão mal encarado do dia anterior, passei a adotar um táctica, que se mostrou infalível. Cada vez que avistava um pastor (eles andavam sempre junto à estrada, deve passar um carro muito de vez em quando por aquelas estradas), ainda não tinha chegado ao pé dele, já estava a falar com ele, ele sempre muito simpático vinha ao meu encontro, passados 30 segundos de conversa, o cães de guarda já me viam como amigo do dono, deixava automaticamente de ser o diabo, acabava por juntar o útil ao agradável, já que também gosto de conversar e perante quase total isolamento, ainda mais. Curiosamente, muitos deles conheciam Abrantes, a maior parte devido ao "triângulo" Abrantes, Santa Margarida e Tancos, muitos deles fizeram tropa por aqui.

Muito raramente, quando faço a pergunta a um local "o caminho a seguir é muito a subir?", me responde com verdade (quer dizer, para eles é verdade, só que devem tê-lo feito de carro), quase todos me lançam um "oh isso é sempre a andar", quase sempre, a seguir vem uma subida de grandes dimensões. Por aqui, aconteceu o contrário, numa das conversas "pastoris", lancei a pergunta da praxe, resposta "oh meu amigo você tem muito que sofrer!". Confesso que desejei que ele fosse como outros, que não estivesse a ver bem as coisas, mas ele estava certo, que subidas meu Deus.

Sempre a subir, até que em Carviçais, onde parei para um almoço volante, encontrei a antiga Linha do Sabor, hoje transformada em Ecopista do Sabor. Sabia que a partir dali, a coisa seria mais ou menos plana. Assim foi, uns quilómetros mais a frente paro num café em Carvalhais. Aí troco, mais uma vez, palavras com um antigo soldado do Quartel de Abrantes, (este não era pastor) com grande cara de admiração, me disse "Meu amigo não sei como é capaz!" (senti um pouco de orgulho). Volto à pergunta da praxe " Para Torre de Moncorvo como é?", ao que o senhor me respondeu "Meu amigo não queira voltar de lá para cá, é sempre a descer!", e assim foi, num instante cheguei a Torre de Moncorvo.

Ao chegar à Torre Moncorvo, já estava ansioso pelo que vinha aí, iria apanhar o curso do rio Douro. Eu adoro rios e toda a sua cultura associada, toda a vida vivi a poucos metros do rio Tejo e hoje quase que o vejo como um velho amigo. O rio Douro, neste troço alia uma paisagem belíssima e toda uma cultura de vinhos com centenas de anos de história. O aliar da tarefa cumprida, já que a dificuldade da etapa já tinha ficado para trás, a uma paisagem deslumbrante (acho que deslumbrante é pouco), aqueceu-me o coração (mesmo), esqueci subidas, frio e chuva. De Torre de Moncorvo para o rio Douro é mais uma descida de largos quilómetros (o que ajudou à festa), passando pela foz do rio Sabor.

A primeira grande quinta que me aparece em vista, é a Quinta do Vale do Meão, com hectares vinha a perder de vista, cuidadosamente alinhado nas encostas do rio, quase como se de uma pintura se tratasse. Só pensei, "beber um vinho daquelas uvas, sentado no meio da vinha e olhar para rio, deve ser fabuloso" . Aquela Quinta foi outrora pertença de D. Antónia Adelaide Ferreira, mais conhecida como Ferreirinha (até teve direito a uma série da RTP), hoje ainda pertence à família e dizem, nunca provei, mas gostava, possuir vinhos de muitíssima qualidade. Para mim, um bom vinho, ou melhor, ter prazer em beber um vinho, é sobretudo o aliar de uma bebida cuidada a uma boa história, aquela frase popular de que um vinho é mais que uma bebida, para mim faz sentido. Esta Quinta do Vale do Meão faz história desde 1877, um vinho seu vai-me saber bem com certeza.

Fiquei mesmo rendido ao Douro (a voltar, em exclusividade). Fiquei tão rendido, que queria aproveitar o máximo, no pouco do dia que me restava. Ao chegar a Pocinho, atravessei o Douro para a margem sul e aí dei de caras com a estação de comboios do Pocinho, verifiquei no meu mapa, era possível fazer o percurso entre duas estações de comboio sem me desviar muito do meu traçado. Fazer a linha do Douro de comboio, é por si só uma experiência, já que circula entre o rio e a vinha, promovendo vistas que de outra maneira seriam impossíveis de experienciar. Cheguei à estação do Pocinho, perguntei a um funcionário da CP se dava para levar a bicicleta no comboio, ele respondeu-me que não. Pensei "lá o Douro vai ficar para trás!", mas o funcionário continuou a olhar para mim e lá me perguntou "o amigo vem de onde?", e eu "de Bragança", olhou-me com outros olhos e perguntou "e vai para onde?", e eu "para Abrantes", ele soltou rapidamente um "valha-me Deus!" e perguntou novamente "vai até que estação?", e eu "só até à próxima", num segundo ele retorquiu "então entre no comboio, que eu também sou ciclista", mais um bocadinho de Douro conquistado.

Andei apenas 3, 4 minutos de comboio até à estação de Freixo de Numão. Correspondeu e em boa hora o fiz. É digno de ser vivido, que paisagem. Mas acabou rápido, era tempo de voltar à bicicleta e dizer um até já (para uma próxima viagem) ao Douro. Mais uns quilómetros e cheguei a Murça do Douro, pequena aldeia do Concelho de Vila Nova de Foz Côa, onde iria ficar a dormir, no Bairro do Casal.


Em Murça do Douro encontrei um ambiente acolhedor de uma aldeia típica do interior. O Bairro do Casal ficava lá no cimo da aldeia (tive de saltar da bicicleta, antes que o "motor" desse de si ). Ao subir até ao cimo da aldeia, de bicicleta na mão, mais uma vez os locais foram bastante simpáticos comigo, encorajando-me para os metros finais. O Bairro da Casal foi umas das mais agradáveis surpresas da viagem (fiquei encantado), é o conjunto de 5 casas recuperadas, numa espécie de condomínio rural, com uma área em comum, com jardim, sauna e piscina, com vista para a serra (já disse que fiquei encantado :) ). E como se não bastasse, mais uma vez fui recebido como se tivesse chegado a casa, com direito a bolo caseiro e tudo (estava quase tão bom como o da minha Mãe). Fiquei instalado na Casa da Aida, tomei um banho e a fome apertou, aqui nasceu um problema, o bolo era muito bom, mas precisava de "combustível" ou proteína, e não existia qualquer restaurante ou mercado na aldeia. Aqui como anjo, entra a D. Odete que já me tinha recebido muito bem e prontificou-se a levar-me ao restaurante mais próximo (voltei para junto do Douro). Lá jantei, conversei e voltei para a "minha" casa.

Carlos Bernardo

Nascido e criado em Abrantes, onde vive e nunca desejou ser de outro lugar. Apesar disso adora viajar. Mais do que uma foto de viagem, gosta de uma boa conversa. Criou o blog O Meu Escritório é lá Fora! em 2013. Foi nomeado para melhor Blog de Viagens Pessoal, no BTL Travel Blogger Awards, e considerado como um dos 10 melhores blogs de viagem nacionais.

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