(crónica de Carlos Bernardo)
Dia 2 - 14/10/2014 Sendim
- Murça do Douro
Começo o
dia com uma corrida até à janela.
Não estava a chover. Corro até ao aquecedor. A roupa estava seca. O dia estava
a começar bem.
Apesar
de não estar a chover, estava um frio seco, daquele que atravessa a pele e
entra nos ossos. Saio de Sendim, com uma dezena de bons dias dados, as pessoas
por são realmente simpáticas (ou tive sorte no dia). Após os primeiros quilómetros,
notei logo a mossa que o dia anterior me tinha provocado. Tinha as pernas
pesadas e quando as pernas dão essa
indicação à cabeça, ela rapidamente
espalha a notícia pelo resto do corpo. No seguimento do dia anterior, o plano é
coisa rara para estes lados ou se sobe ou se desce, foi em sofrimento que
cheguei a Mogadouro. Assim que chego a Mogadouro, sou logo presenteado com um
olá, era um dos rapazes que no dia anterior me deram indicações na bomba de
abastecimento em Sendim. Paro um pouco num banco de jardim, vejo os locais a
circularem, nas suas tarefas comuns do dia.
Sigo
para Sul, em direcção a Torre de Moncorvo, mas até lá ainda tinha muito que
pedalar. As paisagens por aqui são lindíssimas, ainda me encontrava no Parque Natural do Douro
Internacional. Até Torre de Moncorvo, seria uma viagem bastante isolada,
passava por pequenas aldeias, onde existam mais casas que gente (e existam
poucas casas). Exista uma figura humana comum, a cada entrada ou saída de
aldeia, o pastor. São um figura mítica desta região. Uns mais velhos outros
mais novos, todos com uma expressão carregada, o tempo para esta gente demora
mais a passar. Não os invejo, mas admiro-os. Todos eles têm pelo menos duas coisas em comum. A
primeira, são bastante simpáticos e sempre prontos para dois dedos de conversa.
A segunda, todos eles têm
cães e todos os cães pensam que os gajos das bicicletas são o diabo. Ainda não
refeito do encontro com o cão mal encarado do dia anterior, passei a adotar um
táctica, que se mostrou infalível. Cada vez que avistava um pastor (eles
andavam sempre junto à estrada,
deve passar um carro muito de vez em quando por aquelas estradas), ainda não
tinha chegado ao pé dele, já estava a falar com ele, ele sempre muito simpático
vinha ao meu encontro, passados 30 segundos de conversa, o cães de guarda já me
viam como amigo do dono, deixava automaticamente de ser o diabo, acabava por
juntar o útil ao agradável, já que também gosto de conversar e perante quase
total isolamento, ainda mais. Curiosamente, muitos deles conheciam Abrantes, a
maior parte devido ao "triângulo" Abrantes, Santa Margarida e Tancos,
muitos deles fizeram tropa por aqui.
Muito
raramente, quando faço a pergunta a um local "o caminho a seguir é muito a
subir?", me responde com verdade (quer dizer, para eles é verdade, só que
devem tê-lo feito de carro), quase todos me lançam um "oh isso é sempre a
andar", quase sempre, a seguir vem uma subida de grandes dimensões. Por
aqui, aconteceu o contrário, numa das conversas "pastoris", lancei a
pergunta da praxe, resposta "oh meu amigo você tem muito que
sofrer!". Confesso que desejei que ele fosse como outros, que não
estivesse a ver bem as coisas, mas ele estava certo, que subidas meu Deus.
Sempre a subir, até que
em Carviçais, onde parei para um almoço volante, encontrei a antiga Linha do
Sabor, hoje transformada em Ecopista do Sabor. Sabia que a partir dali, a coisa
seria mais ou menos plana. Assim foi, uns quilómetros mais a frente paro num
café em Carvalhais. Aí troco, mais uma vez, palavras com um antigo soldado do
Quartel de Abrantes, (este não era pastor) com grande cara de admiração, me
disse "Meu amigo não sei como é capaz!" (senti um pouco de orgulho).
Volto à pergunta da praxe
" Para Torre de Moncorvo como é?", ao que o senhor me respondeu
"Meu amigo não queira voltar de lá para cá, é sempre a descer!", e
assim foi, num instante cheguei a Torre de Moncorvo.
Ao
chegar à Torre Moncorvo, já estava ansioso pelo que vinha aí, iria apanhar o
curso do rio Douro. Eu adoro rios e toda a sua cultura associada, toda a vida
vivi a poucos metros do rio Tejo e hoje quase que o vejo como um velho amigo. O
rio Douro, neste troço alia uma paisagem belíssima e toda uma cultura de vinhos
com centenas de anos de história. O aliar da tarefa cumprida, já que a
dificuldade da etapa já tinha ficado para trás, a uma paisagem deslumbrante
(acho que deslumbrante é pouco), aqueceu-me o coração (mesmo), esqueci subidas,
frio e chuva. De Torre de Moncorvo para o rio Douro é mais uma descida de
largos quilómetros (o que ajudou à festa),
passando pela foz do rio Sabor.
A
primeira grande quinta que me aparece em vista, é a Quinta do Vale do Meão, com
hectares vinha a perder de vista, cuidadosamente alinhado nas encostas do rio,
quase como se de uma pintura se tratasse. Só pensei, "beber um vinho daquelas
uvas, sentado no meio da vinha e olhar para rio, deve ser fabuloso" .
Aquela Quinta foi outrora pertença de D. Antónia Adelaide Ferreira, mais conhecida como
Ferreirinha (até teve direito a uma série da RTP), hoje ainda pertence à família e dizem, nunca provei,
mas gostava, possuir vinhos de muitíssima qualidade. Para mim, um bom vinho, ou
melhor, ter prazer em beber um vinho, é sobretudo o aliar de uma bebida cuidada
a uma boa história, aquela frase popular de que um vinho é mais que uma bebida,
para mim faz sentido. Esta Quinta do Vale do Meão faz história desde 1877, um
vinho seu vai-me saber bem com certeza.
Fiquei
mesmo rendido ao Douro (a voltar, em exclusividade). Fiquei tão rendido, que
queria aproveitar o máximo, no pouco do dia que me restava. Ao chegar a
Pocinho, atravessei o Douro para a margem sul e aí dei de caras com a estação
de comboios do Pocinho, verifiquei no meu mapa, era possível fazer o percurso
entre duas estações de comboio sem me desviar muito do meu traçado. Fazer a
linha do Douro de comboio, é por
si só uma experiência, já que circula
entre o rio e a vinha, promovendo vistas que de outra maneira seriam impossíveis
de experienciar. Cheguei à estação
do Pocinho, perguntei a um funcionário da CP se dava para levar a bicicleta no
comboio, ele respondeu-me que não.
Pensei "lá o Douro vai ficar para trás!", mas o funcionário
continuou a olhar para mim e lá me perguntou "o amigo vem de onde?",
e eu "de Bragança", olhou-me com outros olhos e perguntou "e vai
para onde?", e eu "para Abrantes", ele soltou rapidamente um
"valha-me Deus!" e perguntou novamente "vai até que estação?", e eu
"só até à próxima",
num segundo ele retorquiu "então entre no comboio, que eu também sou
ciclista", mais um bocadinho de Douro conquistado.
Andei
apenas 3, 4 minutos de comboio até à
estação de Freixo de Numão. Correspondeu e em boa hora o fiz. É digno de
ser vivido, que paisagem. Mas acabou rápido, era tempo de voltar à bicicleta e dizer um até já (para uma próxima
viagem) ao Douro. Mais uns quilómetros e cheguei a Murça do Douro, pequena
aldeia do Concelho de Vila Nova de Foz Côa, onde iria ficar a dormir, no Bairro
do Casal.
Em Murça
do Douro encontrei um ambiente acolhedor de uma aldeia típica do interior. O
Bairro do Casal ficava lá no cimo da aldeia (tive de saltar da bicicleta, antes
que o "motor" desse de si ). Ao subir até ao cimo da aldeia, de
bicicleta na mão, mais uma vez os locais foram bastante simpáticos comigo,
encorajando-me para os metros finais. O Bairro da Casal foi umas das mais
agradáveis surpresas da viagem (fiquei encantado), é o conjunto de 5 casas
recuperadas, numa espécie de condomínio
rural, com uma área em comum, com jardim, sauna e piscina, com vista para a
serra (já disse que fiquei encantado :) ). E como se não bastasse, mais uma vez
fui recebido como se tivesse chegado a casa, com direito a bolo caseiro e tudo
(estava quase tão bom como o da minha Mãe). Fiquei instalado na Casa da Aida,
tomei um banho e a fome apertou, aqui nasceu um problema, o bolo era muito bom,
mas precisava de "combustível" ou proteína, e não existia qualquer restaurante ou
mercado na aldeia. Aqui como anjo, entra a D. Odete que já me tinha recebido
muito bem e prontificou-se a levar-me ao restaurante mais próximo (voltei para
junto do Douro). Lá jantei, conversei e voltei para a "minha" casa.
Carlos Bernardo
Nascido e criado em Abrantes, onde vive e nunca desejou ser de outro lugar. Apesar disso adora viajar. Mais do que uma foto de viagem, gosta de uma boa conversa. Criou o blog O Meu Escritório é lá Fora! em 2013. Foi nomeado para melhor Blog de Viagens Pessoal, no BTL Travel Blogger Awards, e considerado como um dos 10 melhores blogs de viagem nacionais.
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