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quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Prática Multi-Desportiva - Um caminho a seguir ou o caminho a seguir


(crónica de Nuno Gil)

Na última crónica fiz referência a um modelo de desenvolvimento desportivo a longo prazo, o LTAD - long-term athlete development, em especial à primeira etapa deste plano, destinada a crianças com idades, no caso do género masculino, entre os 6 e os 9 anos, e no caso do género feminino, entre os 6 e os 8 anos.

Considero esta etapa crucial no desenvolvimento desportivo de cada indivíduo, comparando-a mesmo com o ensino pré-primário, pois é neste período que se adquirem muitas das competências fundamentais para a literacia motora.

Nesta fase as crianças estão predispostas para a aprendizagem das diferentes habilidades motoras básicas, como o correr, o saltar, o lançar ou o agarrar. Habilidades estas que são fundamentais em qualquer atividade desportiva. Também nesta idade as crianças devem desenvolver competências motoras ao nível da agilidade, coordenação, velocidade flexibilidade e equilíbrio.

Assim, em qualquer atividade desportiva, direcionada para esta faixa etária, a aprendizagem destas habilidades e competências deve estar presente, uma vez que é nesse espaço temporal que se encontram os períodos óptimos de aquisição das mesmas. O não desenvolvimento destas nesta fase, é similar ao não desenvolvimento das competências sociais, da autonomia, da linguagem oral, dos grafismos, da matemática ou das expressões, durante o ensino pré-primário.

Mas a importância desta fase não se resume à aquisição das habilidades motoras básicas. A vivência de diferentes experiências motoras é fundamental para o enriquecimento  do currículo motor individual. Pelo que a prática de multi-atividades desportivas não pode ser encarada, por treinadores e dirigentes como uma ameaça à prática da sua atividade, mas sim como um meio adequado de enriquecimento pessoal e de desenvolvimento desportivo, sendo que quanto mais literato motor, isto é, mais rico for conhecimento motor da criança, melhor será, em primeira instância para a própria criança e em segundo plano para qualquer uma das atividades desportivas que o mesmo pratique.

Os treinadores e dirigentes não podem continuar a recorrer ao mito do excesso de carga, para aconselhar a criança que pratica a sua modalidade e outras, a deixar de praticar as outras para praticar apenas aquela da qual se é treinador ou dirigente. Fazê-lo é igual a dizer às crianças portuguesas para não aprenderem mais línguas para além da portuguesa, porque essa aprendizagem iria colocar em causa o seu desempenho na língua materna.

Correndo o risco de me repetir em demasia, defendo que todos os treinadores, dirigentes, professores e pais devem incentivar as crianças desta idade a experimentar/vivenciar o maior número de atividades desportivas possível, pois ao fazê-lo estão a contribuir de forma extraordinária para o desenvolvimento integral destes futuros jovens e adultos. Os saberes motores, psicológicos e sociais adquiridos nesta fase serão de um valor incalculável.

Em minha opinião a criação de constrangimentos à prática desportiva multivariada torna-se ainda mais “criminosa”, quando sabemos que nos últimos anos foram “tiradas” às crianças, as brincadeiras de rua perdendo-se com tal facto horas e horas de enriquecimento motor, horas de treino não formal, que foram de capital importância no desenvolvimento desportivo daqueles que pertenceram às gerações anteriores à dos anos 80 e que limitam as atuais gerações.

A rua e o número de horas de atividade desportiva serão o tema da próxima crónica.

“Durante a minha infância experimentei muitos desportos e gostei de todos eles. Na altura não tive consciência disso, mas essa prática desenvolveu-me habilidades motoras básicas muito boas, que me ajudaram muito quando, aos 15 anos, me especializei no hóquei em campo” Jane Sixsmith, capitã da seleção nacional inglesa de hóquei em campo

Nuno Gil
Licenciado em ciências do desporto, pela FCDEF-UC
Mestre em treino do jovem atleta, pela FMH-UTL
Doutorando em ciências do desporto, na FCDEF-UC
Professor de educação física, na escola secundária Dr. Manuel Fernandes
Ex-treinador desportivo

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